quinta-feira, 18 de março de 2010

O jardim e a poeta - Fábula - Episódio nº 2: Hoje, só consigo chorar!



- Psiu! Poeta! Que lágrimas são essas, a escorrer-te pelo rosto?

Fingi que não ouvira. Por hoje, não desejava espalhar sorrisos, poemas sensuais ou, simplesmente, poemas de amor ou de paz. Nada disso, hoje! Queria silêncio. Somente eu, o meu jardim e um fundo musical, Autumn Rose, executada ao piano, por Ernesto Cortazar.

- Poeta! Não ignores meu chamado!

Permaneci em silêncio, simulando-me ocupada em ligar a bomba d’água, localizada ao fundo do quintal. Depois, recolhi as lingeries coloridas e secas, que dançavam ao vento, enfeitando o varal.

- Poeta! Não sejas mal educada!

A voz continuou insistente. Reconhecera o chamado, mas não estava com vontade nenhuma de conversar com a rosa mais bonita do meu jardim. Aliás, sua beleza, sensualmente vermelha, naquele momento, incomodava-me muito!

- P-O-E-T-A, responda-me!!!

Nossa! Que voz enérgica, aquela! Assustei-me e respondi:

- Oi, rosa! Perdoa-me, mas estou triste, muito triste...

- Não precisas dizer-me. Percebo as lágrimas que não param de rolar, desde que adentraste o jardim. Ouvi teu choro, logo pela manhã. Tive a impressão, de que choraste enquanto dormias, também...

- Ofenderam-me, rosa... ofenderam-me, tanto! murmurei, num fio de voz entrecortado por choro convulsivo.

A voz da rosa suavizou-se.

- Vem! Senta-te aqui, ao meu lado!..

Relutei. Não queria expor meu sofrimento, nem para a Natureza.

- Mas, que orgulho é esse? Que vergonha existe em chorar, minha menina?

A bela flor parecia envolver-me ao veludo das suas pétalas, por tão suave aquele chamado!

Aproximei-me, ainda indecisa...

- Mas, antes de iniciarmos nossa conversa, quero um beijo teu.

Um tanto quanto desanimada, sentei-me na relva macia e beijei a rosa, que fez muxoxo, a demonstrar que não apreciara aquele beijo sem gosto. Ajeitei a saia longa e muito azul, entre as pernas, mas permaneci calada, com o olhar perdido por entre os espinhos da haste que sustentava minha bela rosa.

- Observas meus espinhos... Embora nascidos para proteger-me, machucam-me também, sabias? Aos vendavais, cuido-me!

Uai! Nunca imaginara a possibilidade de uma rosa ser fisgada pelo próprio espinho! Como se advinhasse meu pensamento, a rosa pronunciou:

- Pela beleza das minhas pétalas, pareço-me contigo e meus espinhos aproximam-se das palavras que fluem da tua poética. Podem ferir aos outros e a ti mesmo, em decorrência...

Arregalei os olhos, surpresa! Lá estava a rosa, a desvendar-me a dor!

- Não há motivo para espanto! Até quando precisarei repetir que tudo sei a teu respeito? Agora, por exemplo, não consegues conter essa dor, que te escorre pelo rosto... Esse rosto que, aos efeitos da ordem natural, deveria apresentar-se mais envelhecido, pelos anos que carregas e pela experiência vivida.

- Mas, isso não ocorre... Dizem que, para a minha idade, ainda exibo aparência jovial! Genética, sorte ou pecado?

Pensei que, talvez, somente eu soubesse a razão essencial daquela pergunta. Mas, a rosa não titubeou em respondê-la:

- Geneticamente, considero-te santificada pelas forças da natureza que uniram teus belos e saudáveis pais. Pela sorte, és nada mais nada menos do que o resultado das causas boas que realizaste pela vida afora. Causas e Efeitos, que se refletem na tua aparência física. Quanto ao pecado, encontra-se apenas nos olhares de determinadas pessoas, não em ti. Nesta seara és, simplesmente, o que a natureza fez ou faz de ti.

Cabisbaixa, intuí que a rosa me sabia por completo, mesmo! Então, expus a solidão daquele momento.

- Ahnnn! Que dor essa que avassala meu peito! Querida Rosa... ops! posso denominar-te Rosa, minha querida rosa?

A rosa sorriu feliz pelo batismo inesperado e agradeceu-me, toda encarnada!

- Rosa, queria segredar-te que, em razão disso – e, exatamente, por este pecado - hoje, eu preciso chorar! Minha alma anseia por este alento, o coração soluça. Veja-me as mãos, trêmulas... Desde a noite passada, descrevem a dor que me invade, a sufocar os poros, um a um! Preciso respirar e necessito fazê-lo através das palavras, companheiras que sabem acompanhar meu lamento...

Rosa manteve-se calada. Sabiamente, calada.

- A ofensa à qual me refiro, faz-me recordar momentos passados, guardados na história da minha vida... Como podem agredir uma pessoa, mesmo que o seja através de palavras, sem ao menos conhecê-la?

Meu cão aproximou-se, para receber carinho. Afaguei-o. Encostou-se aos meus pés, na esperança de descobrir o que me fazia chorar, desde cedo.

As lágrimas não estancavam! Pareciam sangue liberto em corte profundo! Nenhuma folhagem do jardim era suficiente para enxugar a agonia daquele pranto!

- Reconheço que fui e ainda sou uma guerreira que atravessa a vida, indócil e forte! Nada me chega fácil, a não ser o sorriso nos lábios, a Fé e o Amor no coração!

- Oras... e do que mais necessitas? Qual riqueza é maior do que o dom da Vida e a certeza do dever cumprido, honestamente?

Nada respondi. Apenas observei o céu, para além do meu quintal... O sol não aparecera, mas o dia estava muito quente! Pedi licença para tomar um copo de água bem geladinha e aproveitei para molhar, rapidamente, as rosas todas! Exultaram de alegria, balouçando-se nas hastes verdinhas! Rosa pareceu-me ainda mais bonita, com aquelas gotinhas de água a luzir-lhe pelas pétalas aveludadas! Sua beleza agradava-me, outra vez... Poetrix, enciumado, trouxe-me a mangueira d’água, para também ser refrescado.

- Nossa, como és bonita, Rosa! – exclamei, realmente impressionada por tanta beleza!

- Obrigada. És muito bonita, também... respondeu-me, timidamente.

Mas, nada, nada me faria sorrir, naquele momento. Nem mesmo a beleza esfuziante de Rosa! Uma tristeza infinita dominava-me.

- Não fujas de ti mesma! Em quais momentos, da tua vida, encaixam-se as lágrimas teimosas que insistem em turvar-te a vista? Por quê choras, com tamanha dor? Tão forte, tão bela, que és?!!!

- Sabes... sabes a razão, que sei! Choro, minha Rosa querida, porque não compreendo a violência como algo natural. E essa realidade ainda atinge minha essência humana.

Rosa silenciou e continuei meu devaneio.

- Tenho consciência de que, às vezes, pela força do meu verbo, sou mal compreendida. Erro, frente à comunicação com o mundo exterior? Não sei... mas, quedo-me a pensar e a analisar meus atos.

- És louca! Viraste a madrugada a reler os poemas expostos naquele website, além de alguns comentários realizados aos teus escritos e outros mais que realizaste aos textos lá expostos!

- É verdade. Li e reli inúmeros, inúmeros comentários! Por data, busquei alguns, especificamente! Minha memória, neste sentido, surpreendeu-me!

Rosa galhofou: - No mais, vives à procura de tudo, o tempo todo, chegando a culpar Poetrix, pelos sumiços! E, o pobre do motorista? Necessita desdobrar-se em mil homens, para que cumpras os compromissos nos devidos horários! Sair de casa é um transtorno! Ou são as chaves, ou o celular, ou os óculos, ou lap-top, ou o controle remoto do alarme de segurança... Nossa! E os brincos e batons, que o obrigam a retornar, quando já próximos do destino? Chega a ser hilário! Esqueces, tudo!

- Ando, mesmo, muito esquecida... Durmo pouco e isso atrapalha-me. Mas, quanto aos comentários, lembro-me de todos! Talvez, porque não sejam levianos - como anunciado, de forma textual e irresponsável, por um poeta, em outra oportunidade - mas nascidos da minha sinceridade e dos poucos conhecimentos que amealhei pela vida.

Parei, por um instante, a relembrar os poemas e comentários dos meus queridos poetas... Após alguns segundos, retomei minha conversa com Rosa.

- Esquadrinhei falhas, erros meus! Busquei manifestações escritas, que pudessem ter gerado pensamentos dúbios. Enveredei-me pelos detalhes, esburaquei-me, por inteiro, no afã de descobrir um dito mal dito! Cruel comigo mesma, atravessei a noite. Cuidadosa, ignorei quem era a vilã em foco! Persegui-me, pela madrugada inteira! Mas, nada encontrei, ao meu olhar, que indicasse pecado ou ofensa a terceiros, ou ainda, que justificasse a indelicadeza à qual fui exposta.

- Somente ao clarão do dia conseguiste adormecer... percebi tua aflição.

Passei as costas da mão direita no rosto, para enxugar mais lágrimas.

- Não obstante, após o breve descanso da manhã, liguei o computador, reli e chorei! Desabei, Rosa querida!

Aproximei-me da roseira, como se estivesse a pedir-lhe colo protetor. Precisava!

- Trago perseguições do passado, que se repetem no presente. E eu, que cominei à minha bela aparência física ou aos meus sorrisos fáceis, de outrora, a responsabilidade pelo mal juízo que algum dia se fez a meu respeito!

- Em conseqüência, por tanto tempo escondeste teus poemas! Medo de ser mal interpretada! Medo de que te achassem leviana!

- Quantos medos inúteis! Demorei a superá-los. Busquei muitas leituras, nas quais prevalecesse a sensualidade. Veja... veja quantas coisas bonitas encontrei no meu garimpo poético!

Levantei-me. Parecia outra mulher, então! Ajeitei a saia longa que, devido ao calor enfiara-se, grudenta, entre as pernas roliças.

- Em Safo, a “Vênus de Lesbos”, grande poetisa da Antiguidade, li as mais belas canções de amor sensual. Escuta este, que por tamanha beleza declamo-te, por inteiro!

Descerradas as cortinas dos ventos, à minha imaginação, soltei a voz para um Universo sem preconceitos:

"Contemplo como o igual dos próprios deuses
esse homem que sentado à tua frente
escuta assim de perto quando falas
com tal doçura,

e ris cheia de graça. Mal te vejo
o coração se agita no meu peito,
do fundo da garganta já não sai
a minha voz,

a língua como que se parte, corre
um tênue fogo sob a minha pele,
os olhos deixam de enxergar, os meus
ouvidos zumbem,

e banho-me de suor, e tremo toda,
e logo fico verde como as ervas,
e pouco falta para que eu não morra
ou enlouqueça."

Ahnn! Que beleza! As árvores destacaram-se do solo, aproximando-se, para ouvir-me melhor. Libertas, as raízes esqueceram-se dos problemas nas articulações e engalfinharam-se, umas com as outras, na tentativa de desembaraçarem-se para enxergar-me, corpo inteiro! Desse frenesi, soltaram-se algumas gotinhas de seiva, que escorreram pelo meu colo bronzeado! Eu uivava pelos ares, em êxtase! Todos, aplaudiram-me! Rosa, na sua majestade, exalou um perfume delicioso! Encantada, pediu-me mais!

- Em 1888, Laura Chaves, em Lisboa, desvendou ao mundo a força da palavra! Em seu “Volúpia” poetizou, em tom forte para a época, as mágoas do amor que se fora: “Tudo quanto há de mau em mim gozou...” Florbela Espanca, por sua vez, presenteou-me com os mais belos sonetos de amor, que rompem aos borbulhões da sua alma apaixonada. Queres ouvir parte de um deles?

Rosa farfalhou as folhas todas da sua haste, num sinal de assentimento!

- Eis as duas últimas estrofes do seu “Supremo enleio”, escrito em 1894:

“Mas eu sou a manhã: apago estrelas!
Hás de ver-me, beijar-me em todas elas,
Mesmo na boca da que for mais linda!

E quando a derradeira, enfim, vier,
nesse corpo vibrante de mulher
será o meu que hás de encontrar ainda...”

A esta altura, até um arco-íris aparecera, a cortar o céu, de ponta a ponta! E, dezenas de potes de ouro faíscavam, pelos cantos do meu jardim!

- De outras escritoras, muito li e admirei-as, à euxastão, até convencer-me de que a maldade encontra-se no olhar de quem deseja enxergá-la e não nos meus poemas.

- Vives na contemporaneidade. Outros, sucumbem até mesmo ao passado distante! É assim, mesmo... lamentável!

- Rosa, releio aqueles comentários ofensivos e não me conformo! Em vão, todas as batalhas, pela arte livre?!!!

- Não! Não deves realizar esta leitura! Considera o evento como algo fora do normal! Pois assim o é!

- Choro, ainda... Não quero segurar o pranto, pois sinto a pureza da minha vida no gosto salgado das lágrimas que correm!

- Choras, porque, embora triste, sentes o gosto do pensar liberto! Até então, alguns pensamentos antigos, aninhavam-se pelo teu cérebro!

Convicta do que dizia, Rosa continuou:

- Choras, poeta, pelas lágrimas inúteis do passado e sentes o eflúvio da libertação! Liberas da culpa de estimular a maldade alheia, toda aquela beleza natural e os sorrisos fáceis e brejeiros que a acompanhavam! Sorrirás em paz, agora!

- Tomara, Rosa, tomara! Retiro pontos positivos de tudo o que acontece comigo, mas, desta vez...

A rosa interrompeu-me:

- Poeta, qual o teor dos comentários? Por que não os divulgaste e aos seus autores, para que todos possam, também, precaver-se contra tais malfeitores?

- Pensei muito, Rosa. Optei por tornar invisíveis, aos demais olhares, as ofensas. Desde que não se repitam, serei fiel a este pensamento. Prefiro não divulgar o nome daqueles que deflagraram a vertente das minhas lágrimas. Não permitirei que se promovam através da menina pura dos meus olhos! Existem outros caminhos de ação, assim, assim...

- Sábia, minha menina, que sem ser flor, o é!

Uma brisa suave começou a dançar, levando ao seu ritmo algumas folhas secas pelo chão. Meu pensamento voejava! Qual a razão de tanta dor? Por quê tanta fragilidade, frente a dois ou três comentários, vindos de mentes desconhecidas? Precisava entender melhor, tudo aquilo.

- Rosa, a força da minha escrita é coisa antiga. Bem jovenzinha, acabei por levar uma boa surra da minha mamãe, em razão de uma carta escrita para um amor proibido. O romance fora interrompido pela rigorosidade apaixonada do meu pai! Márcio foi meu primeiro e poético amor! Vigiada, pelos quatro cantos da casa e pelos caminhos que me levava ao colégio, despejava as dores daquele amor meio Romeu e Julieta, por inúmeras folhas de papel, cuidadosamente escondidas entre os livros que fingia ler! Mas, meu irmão Miguel, fidelíssimo à mamãe, viu o papel dobrado cair do meu bolso, na hora do almoço. Apanhou-o, lépido. Não sei, até hoje, se leu ou não o que eu escrevera. Sem perceber a falha, lembro-me, tão somente, que fui retirada da mesa, sob a cruel sentença: “Você não é mais minha filha!” O cerco apertou-se. Quase não podia respirar, sem ter alguém do meu lado!

Engraçado... Acho que Rosa não conhecia aquele episódio... Franziu suas pétalas, até ficar toda enrugada. Depois, sacudiu-se na haste, em reprovação ao que acabara de ouvir. Manteve-se, contudo, calada.

- Tranquiliza-te, Rosa! Não guardo mágoas! Vivíamos em época muito diferente e minha escrita, afoita, incomodou os ouvidos da minha querida mamãe! Sabes qual era o teor da missiva, que jamais seria entregue?

Rosa, ainda calada, demonstrou que desejava saber a origem do meu crime.

- Escrevi, mais ou menos, assim: “Pouco importa que me separem de ti. Separarão nossos corpos, somente! Jamais te esquecerei! E, se rasgarem meu peito com um punhal, encontrarão no meu coração, teu nome ali, gravado em sangue!” e, após desfiar um rosário de paixões, finalizava o texto com a seguinte pérola, demais para a época, em particular, para a verve de uma doce jovem, virgem e inocente: “Para quem guardo virgem, este meu corpo?”

Senti até uma vontadezinha de rir, naquele momento, mas a tristeza falou mais alto. Rosa não se conteve e soltou uma sonora gargalhada, que acordou um lindo botão de rosa, recém-nascido... Prestimosas, as outras rosas correram a niná-lo. Rosa desculpou-se.

- De outra feita, ainda pelos meus 17 anos de idade, fui ao cinema com meus pais, na última sessão da noite. Maior prova, de que me consideravam, enfim, uma adolescente! Cinema lotado! Não conseguimos três lugares, juntos. Meu pai acomodou-me e sentaram-se atrás, para defender-me de ataques clandestinos. Lá pelas tantas, Richard Burton, na pele de um padre – portanto, proibido de amar as mulheres – olhou firmemente para Elizabeth Taylor e, cheio de desejo, expressou seu devastador sentimento. Nossa! Fui ao delírio! Nunca vira nada igual! Naquele exato momento, escutei mamãe dizer, nervosa, para o papai: “Esse filme é muito forte para Sílvia!” Essa observação somente aumentou meu enlevo, pois durante anos sonhei com aquela voz gutural do belo herói, a indicar o sujeito dos seus mais fogosos sentimentos: “You!” Uma palavrinha só, bastou para atiçar minha fantasia adolescente! Quantos contos escrevi, então! Todos, escondidos, claro!

Rosa fitou-me com tal profundez, que fiquei a imaginar se minha querida flor sentira desejo algum dia! Mas, frente aquele mistério, continuei.

- Isso, sem contar que li, por inteiro, o livro “A carne”, de Júlio Ribeiro, de um susto só, no Curso Normal, em sala de aula, a escondê-lo sobre as pernas, por debaixo da carteira. Livro proibido, não teria como levá-lo para casa. Emprestei-o na biblioteca municipal e teria que devolvê-lo na hora do almoço, à saída das aulas, porque nada fugia ao olhar vigilante de mamãe. A leitura foi pesada, realmente, para a minha idade. A descrição da estátua de Agasias, conhecida pelo nome de Gladiador Borghese e a loucura que despertara na jovem e sensual Lenita, provocou-me grande impacto e muitas fantasias.

- Indiscutível... a sensualidade sempre esteve presente na tua natureza feminina.

- Sim, mas de forma muito poética e sonhadora...

- Como teus poemas atuais...

- Sim... Hoje, compreendo que captava a sensualidade de tudo! À época, não sabia nem o que era isso!

Rosa fitava-me com carinho, procurando captar os meandros daquela alma, nos seus próprios dizeres, “encantadoramente sensual e pura”.

- Meu primeiro marido não conheceu a poeta de mim. Preocupava-se em exibir minha beleza pelas ruas e praias do Rio de Janeiro... Por tanto amá-lo, acho que me transmutei em poesia viva, aos seus braços! Mas, não creio que me tenha percebido desta forma.

Naquele instante, senti uma tristeza diferente. Pensei nos anseios efêmeros, que não se sustentam às adversidades da vida. Paixões, na realidade. Ato contínuo, o segundo marido invadiu-me a lembrança. Esse... ah! quanto temia minha sensual beleza, que o atraía e afastava, ao mesmo tempo! Tratava-a como inimiga número um! Em consequência, repelia meus poemas. Admirava, recusando-os! Insegurança, só. Amargura doentia, aquela relação! Desejei não ser bela e, por muito tempo castiguei meu corpo, erradamente, pela minha desdita no amor! Queria ser amada pela beleza interior que ostentava! Quanta bobagem! Eca!!! Ligeira, afastei aquilo tudo do meu pensamento. Passado e ponto final.

- Rosa, expus esses fatos somente para explicar-te a origem da sensualidade dos meus poemas. É inerente à minha vida, não tenho como evitá-la! Mesmo assim, não suporto ser mal interpretada! Sofro, muito!

- Por tal motivo, choraste tanto com o teor dos tais comentários... que ainda não revelaste...

- Sim, afoguei-me ao passado, quando ainda não compreendia minhas emoções e, portanto, não possuía argumentos para defender-me!

- Mas, Poeta, sabes agora que despertaste aqueles pensamentos perniciosos (inveja?) em razão da tua livre e bela escrita! Viveste numa época em que inteligência somente se coadunava às mulheres feias! Como derrubavas este mito, tua beleza era maltratada sob a forma de leviandade! Os que reprimiam os próprios sentimentos, atacavam-te! Provocaste a ira de tantos, pela forma sincera de revelar o que pensavas e pelo rigor que imprimias à tua vida particular. Um contraste muito louco, difícil, mesmo, de ser compreendido! E, o mais interessante, é que até hoje trazes esta característica! Poeticamente livre, mas tão difícil de se permitir alcançar como mulher!

- Não é bem assim, Rosa... Apenas, sou conquista de momentos encantados e nem todos dispõe-se a esse deleite...

A linda flor sorriu, a murmurar baixinho: - És a personificação da Poesia...

- Mas, sou realidade, também! Sempre passei ao largo dos caminhos mais fáceis para a sobrevivência; sempre busquei os mais difíceis, conquistados ao sabor do esforço individual!

- E, por isso mesmo, a intensa luta travada fez e ainda faz cansar o pensamento daqueles que, angustiados pelas infelicidades próprias, satisfazem-se à mera tentativa de destruir-te a coragem ou obstruir-te o talento, através de ofensas individuais e descabidas, ditas ao sabor do vento!

- Ah! Rosa! Por quê, isso, agora? Quanto lutei para não perder minha individualidade de fêmea e minha identidade poética e artística!

- Ainda não revelaste o teor dos comentários...

Queria falar, mas não conseguia... Talvez, vergonha de repetir aqueles absurdos! Mas, enfim, tomei coragem!

- Rosa, foram três comentários, escritos por duas pessoas diferentes.

- Ao primeiro...

- O primeiro dizia assim: “Quero te conhecer e fazer muito amor com você.me mande vum email.” - Num rompante de raiva respondi-lhe, sem pestanejar: “Idiota, aqui, também?!!!” - Ele retornou, em nível muito baixo: “Calma, baiana! que p...de poetiza,é você,meu?pena...é uma bela mulher,viu?procure escovar os dentes,tá?” - Achei por bem, não mais responder.

Calei-me, entristecida.

- Dias atrás, a mesma pessoa enviou-me outro e-mail, no seguinte teor: “Sra.venho, agora, pedir-lhe que por favor, perdoe minha grosseria anterior.É uma mulher bela e talentosa.Continue assim, e que deus lhe proteja. Mais uma vez,perdoe-me (se puder)sejamos amigos.Leia meus textos e me escreva.Abraços.” Confesso-te, Rosa, que até o momento, não consegui ler nenhum texto deste senhor. Quem sabe, daqui a algum tempo...

- Agora, vamos aos últimos comentários, que mais te magoaram.

- Ah! Rosa!.. Levei um susto pelo vômito derramado na minha caixa de correio. E, eu que pensei que nada mais me afetaria, neste sentido!

- Nosso coração, por vezes, surpreende...

- Diga-me, se não tenho razão de sofrer. Foram dois comentários seguidos. Melhor destacá-los:

O primeiro: “Muito bem... meu amor, você é rica. Então pode ter o gigolô poeta que quiser. Eu, como sou pobre, só posso ter um monte de véia de 70/80 anos. É a lei do Brasil, e dos paises do 10º mundo. Abraços.”

O segundo: “Como eu abomino... velhas de mais 45 anos deixo você pra algum vagabundo que não quer trabalhar. Porque eu, apesar de coroa, trabalho e não estou interessada em velhas de 60 anos.”

Quase não consegui chegar ao fim do último comentário, pois um soluço doído rompeu da minha garganta e as lágrimas voltaram a rolar pelos meus olhos.

- Interpretada como uma velha que passa as noites a aliciar poetas gigolôs! Pôxa, Rosa... Tanto eu quanto meus amigos poetas fomos ofendidos!

Soluçava, incontida!

- Oras, poeta, sabes que tua idade ostenta o orgulho de ter vivido com tamanha intensidade!

Angustiada, interrompi minha bela flor.

- Mas, Rosa, cheguei a este momento, honrada e criativa! Honesta e viva! De onde esse homem retirou tanta maldade? Quais os parâmetros utilizados, senão a leitura deturpada da minha poética? Nada conhece das minhas lutas, pela vida afora!

- Poeta, reflita! Não te ofendeste pelo fato de ser jocosamente chamada de “velha” e, nem ao menos, por ter sido vista como um animal desembestado que sai pela Internet à procura de casos sexuais...

Descontrolei-me, aflita!

- Rosa! Nada encontra respaldo fático! Nada! Mantenho-me íntegra, como poucas pessoas podem afirmá-lo, de cabeça erguida!

- Sei disso, mantenha a calma! Tens um brilho próprio que ofende aos indivíduos perniciosos à sociedade! Várias pessoas já se referiram a isso, mas ainda não compreendeste...

- Lembra-te daquele meu escrito: “Não confunda mulher bonita e livre com mulher disponível; mulher sensual com mulher leviana e, muito menos, que meus olhos verdes querem dizer sinal aberto”? Embora nascido ao sabor da emoção, no ano 2002, o texto ainda é atual.

- Lembro-me, sim... Aliás, acho o texto adorável! respondeu, num sorriso maroto, minha flor predileta.

Silenciamos... Numa fração de segundos, Rosa quedou-se muito triste, como se estivesse a recordar alguma coisa... Nada ousei falar. Depois de algum tempo, profetizou:

- Que não se orgulhem de fazer-te mal aqueles que a isto se prestam! Nenhuma ofensa pessoal motiva teu choro, neste momento. A razão das tuas lágrimas encontra-se mais além. Vagueia na capacidade que desenvolveste de entrever a força da infelicidade na vida de determinados indivíduos! Por assistir a falta de respeito que ostentam pelo próximo, chegas às lágrimas. Choras e choras e choras, por assistir o extravasar do desamor, feito sem querer ou propositalmente (quem saberá?)

Eu precisava ouvi-la!

- Ah, Poeta! Fico a pensar que se todos os filhos do mundo respeitassem todas as mães e vice-versa, teríamos um mundo diferente: mais humano, mais ético, mais repleto de pessoas que se respeitariam umas às outras! Atitudes passageiras, originadas em rompantes raivosos da personalidade, seriam evitadas.

- Rosa, interpretações precipitadas realizadas somente ao eixo das vivências pessoais provocam erros crassos, porque as pessoas não são iguais.

- Sim, é real. Não temos o direito de ofender ao semelhante, por achá-lo pernicioso como nós. Se colocamo-nos através da escrita e da leitura é necessário aprender a escrever e - u-r-g-e-n-t-e-m-e-n-t-e - aprender a ler e a interpretar a escrita dos demais! Além do que, Poeta, se enfrentamos problemas relacionados aos sentimentos de perseguição, o tempo todo, médicos existem para ajudar-nos! Difícil viver, imaginando-se perseguido!

Rosa parecia conversar consigo mesma.

- Impressionante é que os fatos se repetem, continuadamente... Sob nomes diferentes, atitudes iguais. Por quê? Qual a razão desse Ódio e desse Desamor?

- Confesso-te, Rosa, que não consigo desejar mal a quem me provocou essas lágrimas.

- Talvez, tua missão seja outra, nesses casos...

- Rosa, será que é tão difícil entender que eu só pretendo mesmo é contribuir, através das minhas ações e da minha poética, para suavizar corações carregados de tristeza, ou, para embelezar, mais ainda, aqueles esculpidos aos efeitos da alegria e do respeito humano?

Rosa enxugou algumas gotinhas de orvalho...

- A exposição dos meus poemas nada mais é do que o resultado do esforço diário da poeta, musicista e artista plástica! União de tudo! Novo aprendizado, que desafio!

- Eu sei. Permaneces pela madrugada afora, a escolher cada imagem, carinhosamente...

- Tudo, para iluminar os olhos e o coração de quem lê minhas criações... Nada mais do que isso! Nada mais!

- Como seria bom que o Ódio traiçoeiro não mais se exibisse, tão aventureiro!

Rosa continuou pensativa. Mas, a sabedoria emprestada pela Natureza, permitia-lhe não me plantar nenhuma revolta! Ao contrário, despertava-me para a piedade.

- Os indivíduos, no meio social, atrapalham-se todos, magoam-se facilmente! As traições são tantas, que, a todo momento, imaginam-se perseguidos. Por tal razão atacam. Deves perdoá-los...

- Perdoo aos doentes que desejam a cura! Aos demais, aconselho que suavizem os sentimentos, estudem mais e busquem a própria forma de felicidade, sem ofender ao próximo!

- Poeta, nem todos foram criados sob os efeitos do Amor, assim como tu! Compreenda isso, de uma vez por todas!

- Rosa, se a sociedade magoa-nos, busquemos os motivos! Vençamos os obstáculos! No âmbito da arte poética, que não sejam ultrajadas a felicidade do poeta, nem o seu amor pela vida! Muito menos, a pureza livre pela qual se expõe ao mundo!

- O que mais admiro nos poetas é esse poder da palavra! Se a utilizassem, sempre, para o Bem, seriam imbatíveis, pois construiriam uma nova Era!

- Minha doce Rosa... muitos afogam-se à vaidade arrogante do próprio talento!

- Quando, em verdade, esse talento deveria ser um dos mais belos veículos em direção à concretização da Felicidade individual, que se perfaz à realização de pequeninas coisas, uma de cada vez... mas, sempre!

- Rosa, cada vida, individualmente considerada, é maior do que tudo! Sendo assim, o que não seria quando posta a serviço da Humanidade? Nenhuma Arte é superior a outra. Apenas, cada artista coloca-se no mundo, ao seu tempo. Essa, a grandeza da Arte... o caminho percorrido, os resultados alcançados! Quão belos os desafios de cada um, ao vencer os próprios limites!

- Reafirmo o pensamento de que choras, não pelas ofensas individuais, mas pela ofensa social que presencias! De há muito, teu olhar engrandeceu-se, em direção à coletividade!

- Rosa, não desistirei de ser fiel ao meu coração! Nada me deterá! Continuarei meu caminho, como Poeta do Amor e da Paz...

Rosa silenciou. Levantei-me. Considerei finda aquela conversa de jardim. Não mais queria falar a respeito de tudo aquilo. Abri os braços, apaixonada pelo mundo que me cercava! O vento estava mais forte, naquele momento. Que delícia! De repente... de repente... senti-me leve! Muito leve! Muito leve! Muito mais leve... O que acontecia? Saíra do chão? Um cheiro forte de fogueira elevou-se no ar. Olhei para meu corpo. Diferente... possuía asas! Somente então, dei-me conta de que me afastara, em muito, do chão! Mais uma vez, nas alturas - Eu-Fênix - renascia das cinzas! Minhas asas de fogo batiam afoitas e livres, a caminho do céu. Bela! E, sem pedir licença ao vento forte, declamei meus poemas sensuais, aos sonhos do infinito! Ainda, com lágrimas nos olhos...


Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz.
Cabo Frio, 16/17 de março de 2010 - 22h16.

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